domingo, 27 de maio de 2012





MIA COUTO, in RAIZ DE ORVALHO E OUTROS POEMAS (Caminho, 2009)

PRIMEIRA PALAVRA

Aproxima o teu coração
e inclina o teu sangue
para que eu recolha
os teus inacessíveis frutos
para que prove da tua água
e repouse na tua fronte
Debruça o teu rosto
sobre a terra sem vestígio
prepara o teu ventre
para a anunciada visita
até que nos lábios humedeça
a primeira palavra do teu corpo

(1980)

*

Óleo sobre tela: Finally Feeling the Light, de Kathaleen Madison Moore

domingo, 20 de maio de 2012

quinta-feira, 17 de maio de 2012

quarta-feira, 16 de maio de 2012




Fernando Pessoa
Poesias Inéditas


Bem, hoje que estou só e posso ver

Com o poder de ver do coração
Quanto não sou, quanto não posso ser,
Quanto se o for, serei em vão,
Hoje, vou confessar, quero sentir-me
Definitivamente ser ninguém,
E de mim mesmo, altivo, demitir-me
Por não ter procedido bem.

Falhei a tudo, mas sem galhardias,
Nada fui, nada ousei e nada fiz,
Nem colhi nas urtigas dos meus dias
A flor de parecer feliz.

Mas fica sempre, porque o pobre é rico
Em qualquer cousa, se procurar bem,
A grande indiferença com que fico.
Escrevo-o para o lembrar bem.

terça-feira, 15 de maio de 2012

segunda-feira, 14 de maio de 2012


Trem de Ferro

Tom Jobim

Café com pão
Café com pão
Café com pão

Virgem Maria que foi isto maquinista?
Agora sim
Café com pão
Agora sim
Café com pão

Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força

Oô..
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pato
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
Que vontade
De cantar!

Oô...
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficia
Ôo...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matá minha sede
Ôo...
Vou mimbora voou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Ôo...

Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...

domingo, 13 de maio de 2012



Houve um tempo em que a minha janela dava para o céu, era tão alta, tão alta que não tive tempo de crescer para nela me abeirar e descobrir o que escondia para além das nuvens de Inverno que me diziam de manhã "vamos chover", ou dos nevoeiros Outonais que a empalideciam como a um espelho de casa-de-banho depois de um duche que, ao invés de nos reflectir o corpo nu embirra num sombrio, cinzento e macilento esgar que nada transpõe, ou da luz clara, límpida e forte que me acordava nas manhãs de Verão.

Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma floresta de prédios, telhados sem telhas bonitas como as que daqui avisto, apenas cinzentos, cobertos de antenas desarrumadas como se bailarinos de dança moderna, daquelas em que cada um se move devagarinho sincronizado com o seu par num palco que se assemelha a um arranjo de entulho, delicadamente embalado pela brisa marinha. Janelas e janelas sem fim, com roupa que parecia também cinzenta, poluída, numa monotonia quebrada aqui e ali por uma ou outra floreira que, timidamente tentava sobreviver no meio do betão.

Houve um tempo em que a minha janela dava para um mosaico de quintais, alguns bonitos e arranjados com flores, vasos, banquinhos e churrasqueira para os almoços de domingo, em que filhos e netos se iam multiplicando e enchendo todo o mosaico numa azáfama de sons, cheiros e cores. Outros carrancudos, moribundos e sem graça, como os seus donos, senhores de roupão cinzento e senhoras de avental branco imaculado que a eles se abeiravam apenas às segundas de manhã, para a limpeza semanal (longe da azáfama dos almoços de domingo).

Houve um tempo, ainda, em que a minha janela se abria em par para o Tejo e dele sugava a claridade e a vivacidade suficientes para dar cor aos muitos e muitos carros que dela contabilizava enquanto os via passar, num constante frenesim de carreirinho de formigas incansáveis e imparáveis na sua lufa-lufa diária.

Hoje, quando abro a janela, às vezes encontro o canto de um galo tropeçando na buzina de um carro mais apressado. Às vezes, no Verão, quase que me invadem os troncos cobertos de folhas que teimam em atravessar a rua e entrar janela dentro. Outras vezes, no Inverno, os mesmo troncos já despidos fitam-me como que num lamurio de frio, que o cacarejar de outra galinha se apressa a abafar...

LL 16-11-2005





Bernardo Sassetti

No Profundo dos Reflexos

sábado, 12 de maio de 2012

Praia
 Na luz oscilam os múltiplos navios
 Caminho ao longo dos oceanos frios
 As ondas desenrolam os seus braços
 E brancas tombam de bruços
 A praia é lis e longa sob o vento
 Saturada de espaços e maresia
 E para trás fica o murmúrio
 Das ondas enroladas como búzios.

 Sophia de Mello Breyner
MULHERES

sexta-feira, 11 de maio de 2012

                                                                                      


                                                                                                    PIRUETAS

quinta-feira, 10 de maio de 2012

"...É preciso, para que essa ilha dos amores possa existir, que o homem possa entender que o capitalismo existe, não para ficar continuamente, tendo mais lucro, contando mais juros, e pagando mais divídas pedindo mais dinheiro emprestado, m...as terminar num ponto em que a economia desapareça completamente, em que haja tudo para todos. Primeiro ponto. Segundo ponto: que aí o homem possa passar à sua verdadeira vida, que é a de contemplar o mundo, ser poeta do mundo, e o mundo poeta para ele, de tal maneira que nunca mais ninguém se preocupe com fazer tal ou tal obra, mas por ser tal ou tal objecto no mundo, a identidade dele, a única. O ser único que existe no mundo entre os tais biliões de seres que pelo mundo existem. Então isso aí é alguma coisa que muita gente hoje pode ter como ideal. Muita gente tem como ideal e toda a gente, podemos dizer, tem como ideal. Com um feitio, com outro feitio, de uma maneira, ou de outra maneira, e que talvez realmente um dia tome conta de todo o mundo. " Agostinho da Silva, in 'Entrevista'



quarta-feira, 9 de maio de 2012




Hiperrealismo de Paul Cadden

Art by Fabián Pérez




Retrato de Mulher

Triste Vestiu-se para um baile que não há.
Sentou-se com suas últimas jóias.
E olha para o lado, imóvel.
Está vendo os salões que se acabaram,
embala-se em valsas que não dançou,
levemente sorri para um homem.
O homem que não existiu.
Se alguém lhe disser que sonha,
levantará com desdém o arco das sobrancelhas,
Pois jamais se viveu com tanta plenitude.
Mas para falar de sua vida
tem de abaixar as quase infantis pestanas,
e esperar que se apaguem duas infinitas lágrimas.

Cecília Meireles, in 'Poemas (1942-1959)'



                        

"O Espelho" - Machado de Assis





"Mas, se querem ouvir-me calados, posso contar-lhes um caso de minha vida em que ressalta a mais clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...


- Duas?


- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro(...)." (p. 346).