domingo, 30 de maio de 2010
POEMA A DEUS - S. FRANCISCO DE ASSIS
ORAÇÃO
Altíssimo, onipotente e bom Deus,
Teus são o louvor, a glória, a honra
e toda benção.
Só a Ti, Altíssimo, são devidos,
e homem algum é digno
de Te mencionar.
Louvado sejas, meu Senhor,
com todas as Tuas criaturas.
Especialmente o irmão Sol,
que clareia o dia
e com sua luz nos ilumina.
Ele é belo e radiante,
com grande esplendor
de Ti, Altíssimo é a imagem.
Louvado sejas meu senhor,
pela irmã Lua e as Estrelas,
que no céu formastes claras,
preciosas e belas.
Louvado sejas meu Senhor,
pelo irmão Vento,
pelo ar ou neblina,
ou sereno e de todo tempo
pelo qual as Tuas criaturas dais sustento.
Louvado sejas meu Senhor,
pela irmã Água,
que é muito útil e humilde
e preciosa e casta.
Louvado sejas meu Senhor,
pelo irmão Fogo,
pelo qual iluminas a noite,
e ele é belo e jucundo
e vigoroso e forte.
Louvado sejas meu Senhor,
pela nossa irmã a mãe Terra,
que nos sustenta e nos governa,
e produz frutos diversos,
e coloridas flores e ervas.
Louvado sejas meu Senhor,
pelos que perdoam por teu amor
e suportam enfermidades e tribulações.
Bem aventurados os que sustentam a paz,
que por Ti, Altíssimo serão coroados.
Louvado sejas meu Senhor,
pela nossa irmã a morte corporal,
da qual homem algum pode escapar.
Ai dos que morrerem em pecado mortal!
Felizes os que ela achar
conforme a Tua Santíssima vontade,
porque a segunda morte não lhes fará mal.
Louvai e bendizei ao meu Senhor,
e dai-lhes graças
e serví-O com grande humildade.
Amém.
sexta-feira, 28 de maio de 2010
Desenhar o sol
Falo pouco, fico calado, a sentir. Dizer o quê? Se pudesse abrir o peito às pessoas e mostrar o que está dentro. Quanto mais gosto das pessoas mais emudeço
Apetece-me desenhar o sol a sorrir. Apetece-me desenhar uma menina ao lado de uma árvore grande e a menina ser maior do que a árvore. Apetece-me desenhar uma casa com uma varanda e na varanda flores de caules compridíssimos, até ao alto do papel. Apetece-me desenhar um homem cheio de botões no casaco. Apetece-me desenhar seja o que for em vez de escrever esta crónica. Vou começar um livro em abril, no dia oito, e dá-me medo começar um livro, passar dois anos, a treze horas por dia, naquilo, a acordar com ele, a adormecer com ele. Apareceu-me o título logo, coisa nova para mim, andava eu a trabalhar no plano, que são quatro folhas de papel de agenda cheias de gatafunhos e setas, a maior parte dos quais ilegíveis. Aliás não é um plano, antes coisas dispersas que talvez se condensem. Mas depois o livro em si não terá nada que ver, ou pouco terá que ver, com os gatafunhos e as setas. Serve para ir habituando a mão, agora destreinada, a tropeçar no papel. O meu material são cores, imagens, sons, um ou outro nome, tralha ao acaso, farrapos. Faço-o de insignificâncias que crescem e se vertebram a pouco e pouco segundo leis misteriosas. Depois desfaço. Depois faço de novo. Depois limpo. Depois torno a limpar. Depois acabo e nunca mais o quero ver. Estes últimos tempos tenho lido. De tudo, por puro vício, e sinto-me desocupado, inútil. Os outros trabalham e eu para aqui, à boa vida. Que raio de expressão, boa vida. Tem sido boa, a minha vida? Pareço um estabelecimento de relojoeiro com centenas de mostradores em horas diferentes. De vez em quando badaladas, de vez em quando um cuco a abrir uma portinha de madeira, a surgir de repente, a dobrar-se em vénias, a soluçar, a fechar a portinha, a sumir-se. Amanhã, vinte de fevereiro, é um dia amargo. Relógios gordos, pomposos, de caixa de vidro, relógios feios como a palavra neurastenia. Um piano a um canto da memória, com um metrónomo no tampo. Apetecia-me ter aqui uma ampulheta e observar a areia a cair. Uma frase de Hesse vem-me à cabeça, sem motivo: "É estranho caminhar no nevoeiro: as árvores não se conhecem umas às outras." Vem-me à cabeça e fica, às voltas: as árvores não se conhecem umas às outras. Em casa da Zezinha dei com uma moldura tão feia que se tornava bonita. Três irmãs lá dentro, por ordem de idade, e eu pegado à do meio, com doze anos. A seguir cresceu, a seguir pariu de mim, a seguir meteram-na numa caixa. E as árvores, que não se conhecem umas às outras, não param de falar.
Nunca lhes disse mas sinto-me bem com as minhas filhas: são três também. Falo pouco, fico calado, a sentir. Dizer o quê? Se pudesse abrir o peito às pessoas e mostrar o que está dentro. Quanto mais gosto das pessoas mais emudeço. As centenas de ponteiros não descansam. Se carregar numa tecla do piano ouvir-se-á alguma coisa? Jantei do outro lado da rua e voltei para casa. Na televisão pegada ao tecto as notícias, fornecidas por um senhor que produz romances. Devia ser obrigatório produzir romances: não faz barulho, é barato e mantém os autores ocupados. Se compusessem era um chinfrim, se pintassem um pivete e tudo sujo à volta. Será que as árvores não se conhecem mesmo umas às outras? Com o frio que está devia haver mantas para aquecer os joelhos das casas.
Há bocadinho apetecia-me desenhar o sol a sorrir, agora não sei o que me apetece. Que silêncio. Gostava de ouvir barulho de saltos de mulher no chão, a sua maneira de vestirem de gestos o interior das salas. Não me caía mal um aceno agora, a sombra de uma voz. De manhã a sombra da voz está no lado esquerdo delas, à tarde no direito. O mistério dos seus cabelos que me faz ter saudades do mar. Dia oito de abril. O sorriso da senhora do dono do restaurante enche-lhe a cara toda: basta sorrir para ficar agosto. Quando vista de lado era um agosto, quando vista de frente era um abril: olha, ainda me recordo do poeta Manuel Bandeira. Não esqueço nada: é o meu pior defeito. Memórias, remorsos, gente, o homem que em Angola me respondeu, à beira da picada, ao perguntar-lhe se a fazenda Pecagranja era perto:
- É perto mas é longe
e eu de boca aberta com tanta sabedoria. Um camponês esfarrapado a falar assim. Trazia o borrego preso por uma corda atada não ao pescoço, aos testículos. Se nos atam pelos testículos obedecemos que é uma limpeza. Tudo é perto mas é longe, amigo, desculpa a minha estupidez. Carta de um outro a um primo que lhe pedia cem escudos: perdoa não mandar os cem escudos mas já fechei o envelope. O que aprendi em África, meu Deus. E lá vêm as mangueiras, enormes, a longa, densa fila de mangueiras ao crepúsculo. Quero desenhar o sol a sorrir. Quero desenhar cerejas azuis como a Zezinha em pequena, numa folha de papel que emoldurei. Quero desenhar-me a mim, de chapéu de coco, polainas e bigode retorcido. Quero que não haja noite. Ou não haja manhã e me arranquem ao sono como quem puxa um adesivo horrível de uma zona com pêlos. Quero que me toquem, nem que seja com um dedo no ombro. Quero voltar da mata para sempre e ficar aqui sentado a olhar para vocês, de órbitas redondas como pires, como aquele negro velho, acocorado numa pedra ao centro da aldeia desfeita, indiferente às cabras mortas e à cinza, a chupar, de tempos a tempos, um pobre cigarro apagado.
Crónica de António Lobo Antunes
segunda-feira, 24 de maio de 2010
Poesia de Clarice Lispector
Meu Deus, me dê a coragem
Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
o meu pecado de pensar.
quarta-feira, 19 de maio de 2010
MORRER DA CURA
EU IMAGINO o que Sócrates ouviu em Bruxelas e o ministro das Finanças teve de engolir! Se a Merkel se ri deles na própria cara, como no vídeo que passa aí na Internet para nosso desgosto e vergonha, o que não terá sido aquela reunião à porta fechada!
Eu compreendo e agradeço que mais vale puxar as orelhas aos caloteiros do que ter de chamar a brigada das cobranças difíceis!
Vamos lá ver se chegam estas medidas ps! Sopram-me de Bruxelas que não chegam… vamos sofrer tanto como os gregos, para não apertarmos o pescoço do Zé Povinho com uma mão e assinarmos o troço tresmalhado do TGV com a outra, no mesmo dia!
Ora estas medidas anunciadas vão ser lindas! Digo-vos eu que noutras paragens já vivi “semanas de trabalho de três dias”, congelamentos de salários, suspensão de subsídios de férias, recolher obrigatório, estado de sítio, e tudo o que de pior se possa imaginar. Vamos ver se não morremos da cura…
Uma coisa é certa: pagamos impostos a mais para o desenvolvimento que temos. E quando três quartos da despesa primária é para pagar os vencimentos dos funcionários públicos, devemos perguntar, como se fôssemos alemães, se eles não poderiam também ajudar-nos melhor a pagar o que devemos e que até nos faz corar.
Por Joaquim Letria
Eu compreendo e agradeço que mais vale puxar as orelhas aos caloteiros do que ter de chamar a brigada das cobranças difíceis!
Vamos lá ver se chegam estas medidas ps! Sopram-me de Bruxelas que não chegam… vamos sofrer tanto como os gregos, para não apertarmos o pescoço do Zé Povinho com uma mão e assinarmos o troço tresmalhado do TGV com a outra, no mesmo dia!
Ora estas medidas anunciadas vão ser lindas! Digo-vos eu que noutras paragens já vivi “semanas de trabalho de três dias”, congelamentos de salários, suspensão de subsídios de férias, recolher obrigatório, estado de sítio, e tudo o que de pior se possa imaginar. Vamos ver se não morremos da cura…
Uma coisa é certa: pagamos impostos a mais para o desenvolvimento que temos. E quando três quartos da despesa primária é para pagar os vencimentos dos funcionários públicos, devemos perguntar, como se fôssemos alemães, se eles não poderiam também ajudar-nos melhor a pagar o que devemos e que até nos faz corar.
Por Joaquim Letria
sábado, 8 de maio de 2010
"A anémona dos dias" e "Cidade" a poesia de Sophia de Mello Breyner Andresen
A ANÉMONA DOS DIAS
Aquele que profanou o mar
E que traiu o arco azul do tempo
Falou da sua vitória
Disse que tinha ultrapassado a lei
Falou da sua liberdade
Falou de si próprio como de um Messias
Porém eu vi no chão suja e calcada
A transparente anêmona dos dias.
CIDADE
Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.
Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.
Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.
Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.
domingo, 2 de maio de 2010
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