terça-feira, 18 de agosto de 2009

A arte de governar

por ADRIANO MOREIRA
Alguns dos responsáveis pelos governos de grandes potências, sendo que a hierarquia do Estado na comunidade mundial tem de ser data- da, ensaiam beneficiar os sucessores com o legado da sua experiência e contribuições para o que chamam a arte de governar. O problemático século XX deixou alguns exemplos desses textos, que são diferentes de alegações justificativas, embora de regra os autores assumam que todo o trajecto foi justificável.
Os Estados Unidos dão exemplo com a tradição dos discursos de despedida dos presidentes, que não desperdiçam essa oportunidade solene de tentar contribuir para o reforço do desígnio nacional, e dos métodos mais apropriados no sentido de o tornar directivo da história a construir. Na história do presente destacou-se o discurso que Dwight Eisenhower pronunciou em 17 de Janeiro de 1961, advertindo os americanos de que o país tinha sido compelido a criar uma indústria de armamento sofisticado e de grandes proporções, de modo que a relação entre esse complexo industrial militar, de dimensão sem precedente, e os milhares de homens e mulheres a participar directamente na estrutura da defesa e segurança, garantia que "nenhum potencial agressor possa sentir-se tentado a arriscar a sua própria destruição". Mas, com sabedoria, deixava compreender que não estava assegurado o controlo nacional desse complexo militar-industrial, apontando como exigência da governabilidade desejável a precaução contra a aquisição de demasiada influência, "procurada ou não procurada", de tal complexo na gestão do Estado, apelando à cidadania activa para que os objectivos da paz, do credo americano, não fossem afectados.
Ainda que não meditadas suficientemente pelos sucessores, as palavras continuam em exercício. Pareceram ter um eco suficientemente audível quando J. F. Kennedy, em 26 de Junho de 1963, no ambiente crítico da guerra fria, e tendo conseguido meses antes resolver em paz a crise dos mísseis de Cuba, se dirigiu aos alemães e ao mundo, discursando junto ao Muro de Berlim, tendo por afirmação central a famosa afirmação - Ichbin ein Berliner, também sou um berlinense. Recordando o cerco de dezoito anos a que a cidade foi submetida, proclamava: "Peço-vos, para finalizar, que olheis para as esperanças do futuro a despeito dos perigos do presente, que da nossa liberdade de Berlim e do país olheis para o triunfo final da liberdade, que deste Muro olheis para um futuro de paz e justiça, que todos olhemos para a humanidade no seu conjunto." Este foi o seu discurso do adeus, porque antes do fim desse mesmo ano seria assassinado em Dallas, adivinhando-se por quais razões, mas não por ordem de quem.
O discurso de Obama, pronunciado no Cairo em 4 de Junho de 2009, parece ter raízes nestas mensagens de fim do tempo dos outros, mas destinadas a permanecer no tempo do sonho americano. Um sonho que não pode ser uma utopia destinada a não ser vivida em terra alguma. Tem de ser parte de um conceito estratégico, com a necessária atenção nos desafios do futuro que nenhum poder define para todos, e que de regra a todos surpreende. Pareceu um regresso à leitura dessa experimentada arte de governar, colocando a razão no lugar do ditado, com estas palavras: "Já aprendemos, de nossa experiência recente, que quando um sistema financeiro enfraquece, num país, a prosperidade de todos sofre, em todos os lugares. Quando uma gripe faz adoecer um ser humano, todos ficam ameaçados. Quando uma nação trabalha para construir uma arma nuclear, o risco de ataques nucleares aumenta para todos os povos. Quando um extremista violento opera num desfiladeiro nas montanhas, há pessoas ameaçadas do outro lado do oceano. E quando inocentes são massacrados na Bósnia e no Darfur, a mancha alastra por toda a nossa consciência colectiva. Isto é o que significa partilhar o mundo no século XXI."
O discurso do Cairo apela ao regresso ao diálogo entre as nações, mas são muitas as cadeiras que esperam por ocupante. Não vai ser fácil.

Retirado do Jornal Diário de Notícia de 14 de Julho


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