terça-feira, 18 de agosto de 2009

Crónica de Nuno Lobo Antunes


No mundo das crianças a preguiça não existe



"A Inês tem sete anos e é encantadora. No quadro branco pintou uma paisagem ingénua, por onde passeia a sua infância. Num traço hesitante surgiram montes e casas e, por cima, um Sol que, por se sentir sozinho, pediu a umas nuvens que lhe izessem companhia. Quando acabou, a artista interrogou-me sem palavras, pedindo aprovação para um desenho colorido com o brilho do olhar, a vivacidade da expressão e a facilidade do sorriso. Como se pode julgar o que é maior do que nós? Não foi fácil entender o motivo da consulta. Dentro da sala de aula-explicava a mãe- a Inês sofre uma metamorfose ao revés. A borboleta esfusiante transforma-se num bichinho amedrontado, que se esconde atrás das colegas, na esperança de não ser notado. Tudo o que tem a ver com a Escola, mesmo o mais simples exercício, a leitura ou escrita de um monossílabo, assemelha-se a um difícil número de trapézio, donde antevê, como eminente, uma queda aparatosa, ponto de exclamação numa arena sem rede. No entanto, mal toca a campaínha para o «recreio», está de volta a alegria viver que enche de cor, o nada de um quadro em branco. Pouco a pouco, a Inês deixou de acreditar que era capaz e, na certeza da sua incompetência, sentiu-se culpada e má, menina que não presta, para quem as letras e os números têm segredos indecifráveis, enigmas que os colegas resolvem na ligeireza de um «abre-te Sésamo», tesouros que lhe estão vedados. Porém, estou certo que lê, como ninguém, a inquietação, (e angústia), que o olhar da mãe não consegue disfarçar. Todos os meses percorro as Escolas do País, levando um Evangelho de ideias simples, princípios em que acredito. As crianças nascem para ser felizes. O seu cérebro tem um potencial fantástico de curiosidade, espanto, encantamento pela descoberta. Até à entrada na Escola, isto é evidente para todos os pais, que inevitavelmente se apaixonam por aquele brilhozinho nos olhos, o riso sem disfarce, a alegria sem nuvens. O dito inesperado, a observação certeira, a coerência com o universo. Porém, à entrada na Escola, para muitos, tudo se transforma. De repente, o mundo mudou. O afecto ou sorriso dos adultos parece depender da facilidade com que se resolvem novos quebra-cabeças, que envolvem gatafunhos a que os «crescidos» chamam letras e números. Se, para alguns, a navegação dessas águas é fácil e fonte de encorajamento e satisfação, para outros, é um Cabo das Tormentas, sem Boa Esperança à vista. As crianças entristecem, prisioneiras de um aquário onde muitos olhos observam os seus resultados, realizações, derrotas. A autoconfiança esvai-se lentamente, a ida para a Escola torna-se uma punição. As outras crianças, muita vezes imitando os adultos, fazem troça de uma resposta errada, de uma leitura hesitante, de um ditado com erros, que é exibido, como edital, perante a turma. És preguiçoso -dizem uns - és um distraído - dizem outros. A insinuação da inferioridade vai-se tornando progressivamente mais clara, até atingir, por vezes, a afirmação pura e simples de que se é «burro». Em casa, tentando ajudar, a mãe senta-se com o filho, durante horas intermináveis, na realização dos trabalhos-de-casa. Tempo de frustação intensa,, que muitas vezes acaba com lágrimas de uns e de outros. O mundo, para a criança, tornou-se hostil. Para os pais a perplexidade: como explicar que aquela criança tão «viva» e «esperta», se mostre incompetente quando posta à prova no mundo das letras e dos números. Como explicar que o que parece ter aprendido hoje, seja de pronto esquecido amanhã? Porquê hoje responder bem às questões colocadas em casa, mas chegado o dia do teste, tudo pareça ter-se dissolvido num mar de ignorância. Como explicaro contraste entre a dificuldade de concentração nas aulas e as horas esquecidas em frente a um jogo de computador, numa vigilância de sentinela? E o «click» de que os amigos falam e não chega? E a imaturidade que a psicóloga diagnosticou e não mais se resolve? A explicação surge em regra responsabilizando a criança; é distraída, preguiçosa, desinteressada. O discurso não deixa dúvidas, a culpa é da criança;«-porque não pões os olhos na tua irmã? Porque não és como o teu colega Luís? Sabes os sacrifícios que os pais fazem para te educar...porque não lhes dás essa alegria?« E a criança esforça-se mais uma vez, e mais uma vez falha, até à conclusão inevitável: não presta! E se não presta e não é capaz porquê tentar? Algumas descobrem a saída que os poderá tornar populares: ser o «palhaço» da aula, o mais aventureiro, o que desafia a autoridade. Na infância e na adolescência... O meu credo é simples: - Não existem crianças preguiçosas, mas sim crianças cansadas do insucesso, - O insucesso cria um círculo vicioso que gera mais insucesso, descrença, frustação. -Os bons resultados, pelo contrário, aumentam a motivação, a confiança, o êxito. - As crianças não acordam de manhã com intenção de falhar, errar, criar angústia em pais e professores. Se isso acontece, é porque a vida escolar nada lhes trouxe que as faça felizes ou confiantes. A minha ideia mais simples, e porventura a mais importante, é de que no mundo das crianças a preguiça não existe.