sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Memórias de África


Enya - Storm in Africa


Nasci numa pequena localidade, distante da civilização, mas “pertinho” da histórica Ilha de Moçambique, do concelho de Nampula, numa madrugada de Setembro. Tive como parteira a minha avó Benvinda por não haver nas proximidades, nem profissionais de saúde, nem hospitais. Os nativos deste concelho eram maioritariamente Macuas, mas na Ilha havia uma fusão de Afro-árabes, Goêses e Indianos. O meu pai como ferroviário é constantemente transferido de localidade em localidade, assim nunca ficámos tempo suficiente nos locais e escolas de modo a fazermos amizades. Recordo uma casa em Pessene, no meio do mato, com um quintal enorme cheio de árvores de fruta, dois poços e muitos animais que nos acompanharam durante quase toda a infância e adolescência. Junto à nossa, existia apenas outra casa de alvenaria também dos Caminhos- de -Ferro de Moçambique e ao longe as palhotas dos indígenas e os animais da floresta! Junto ao nosso quarto havia um lago onde as diversas variedades de rãs decidiram fazer habitação e nos dias de chuva executavam um cântico belíssimo. As árvores eram o mote para as nossas brincadeiras, descalças pela floresta em redor da casa íamos à descoberta, no seu majestoso silêncio. Á noite com o cantar das cigarras, a luzinha dos pirilampos e o som mágico do batuque, lá bem longe, ficávamos a sonhar de olhos abertos as histórias que liamos do Fantasma e das Florestas Encantadas! Ao final da tarde com o cair do sol , a saída de milhares de morcegos em voo raso por cima das nossas cabeças fazia-nos fugir apavoradas para dentro de casa, tinham-nos dito que se agarravam aos cabelos e nunca mais largavam. Durante a noite havia sempre um mais afoito que entrava em casa e caía nas nossas camas: - “MÃE, olha um morcego, MÃE!!!”, lá vinha ela de vassoura em punho meter na ordem o atrevido e pacientemente o encaminhar para fora de casa! Que magníficos eram os sons da noite, deitada em permanente alerta, escutava o coaxar das rãs, os grilos, as cigarras, o batuque que se ouvia vindo de longe e que me transportava àquele mundo povoado de magia… Durante o dia escapava muitas vezes à atenção da minha mãe e vagueava mato fora na curiosidade de ver o modo de viver dos nativos. Ía até às pequenas aldeias indígenas circundadas por uma paliçada espinhosa que servia para os proteger dos animais selvagens, as palhotas com telhado de capim e as paredes de ramos de árvores e forradas de caniço ou colmo, ficava ao longe escondida a olhá-los, simplesmente a olhá-los. Pareciam tão felizes...o comer cheirava tão bem que abria o apetite, via a liberdade das crianças que brincavam nuas e despreocupadas alheias aos problemas dos mais velhos e visitava os cemitérios que me intrigavam porque via junto às campas rasas tachos de comida, biberãos com leite, e perguntava-me para que serviriam! Mais tarde disseram-me ser uma tradição, os parentes acreditavam que as almas vinham comer o que mais gostavam. As férias grandes eram passadas numa praia lindíssima, Bilene, onde o meu pai tinha, como funcionário dos CFM, direito a uma casa mobilada mesmo junto à praia. Deliciavamo-nos naquelas águas limpidas e transparentes onde abundavam os peixes que quase agarravamos com as mãos… Mais tarde junto ao rio Incomáti os percursos a pé nas suas margens, o convívio com os pescadores, as pirogas,o simples usufruir de uma paisagem paradisíaca! No quintal os cajueiros, a cana-de-açucar, as abacateiras, bananeiras, goiabeiras, serviam de repasto para repor as energias gastas por tantas andanças... O pôr-do-sol... Um dia, ainda garota, vi na estação dos Caminhos-de-Ferro, filas de negros com ferros a prendê-los uns aos outros pelos pés, aspecto miserável, olhares perdidos... perguntei porquê! Bandidos, responderam-me. Ficou a curiosidade de saber mais e largos anos depois a felicidade da Revolução dos Cravos!

Natália André

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